CAÇAPAVA e regiãoFEB

O dono dos sonhos (histórias da Segunda Guerra Mundial!!!

Era intenso o movimento do fim de tarde no bar da pracinha da cidade mineira. Os costumeiros paus d’água cumpriam o ritual diário, cada qual com o seu pretexto ou sina. Com a fala enrolada um deles se dirigiu ao companheiro do lado:

            – Mais uma o.. o Matadez?

Em resposta o outro assentiu com a cabeça e mal teve o copinho recompletado de cachaça, entornou a bebida goela abaixo, num rápido meneio de cabeça. Correu as costas da mão pelo rosto barbudo, limpando o resto entornado. Estrebuchou o corpo com a forte reação da bebida e, sem mais, como era seu costume, deu as costas aos companheiros e saiu do bar.

O serviço de autofalante, instalado no coreto da praça, tocava um maxixe. A música alcançou logo o cérebro confuso fazendo o homem entregar-se a corrupios desengonçados, executando seu exótico bailado. Uma capa de chuva, inseparável indumentária do lunático bêbado, agitava-se folgada no corpo magro. A população já se acostumara com a loucura de Pedro Cantídio, ou Matadez, como era conhecido por todos. Seus alucinados gritos e extravagantes danças eram conhecidos largamente na cidade. Tais feitos acabaram por lhe dar a popularidade que então gozava, em detrimento de sua verdadeira identidade, a do expedicionário herói da guerra da Itália. A loucura crescera num ímpeto assustador nos primeiros meses após o retorno da guerra e a contribuição maior para completá-la fora Rosa, o primeiro e único amor de Pedro que a reencontrara na escura rua do mercado, junto com as duas únicas prostitutas da pacata cidade, vendendo seu corpo. Rosa sucumbira a certa altura da guerra diante da notícia falsa que chegara dando conta da morte de Pedro, em combate.     

E a vida da cidade, no longínquo interior mineiro ganhava colorido com a atuação cada vez mais excêntrica do Matadez. Ninguém se lembrava mais de Pedro, o herói. Tinham agora apenas o Matadez, o maluco que nunca tirava a grande capa imunda de cima da roupa do corpo. Chovesse ou fizesse sol, não importava, a capa ele não tirava. Havia um sério compromisso entre o subconsciente e seu corpo: – talvez acontecesse de novo! Ele tinha que estar preparado! Aquelas duas noites, enrodilhado no fundo de um buraco lamacento de neve derretida nas encostas de Monte Castelo, na Itália, haviam criado nele um trauma com relação ao frio. Seus agasalhos haviam ficado para trás ao iniciar-se o ataque ao morro, defendido pelos alemães. Escaparam-lhes das mãos, ao correr para o abrigo. Três dias de intensa luta ele enfrentara na penosa situação, onde a resistência humana fora levada aos seus limites máximos de tolerância física e mental. Eram tentativas seguidas de avanços e imediatos recuos para os abrigos, permeadas de visões tétricas de companheiros tombando sob o fogo da metralha das terríveis metralhadoras “Lurdinha” dos alemães. E naquele desespero, sentindo a pressão do medo, da fome e do frio, seu cérebro não deu mais guarida para o bom senso: Pedro levantou-se do abrigo e como um louco, gritando a plenos pulmões, armado apenas com sua baioneta, investiu morro acima contra a casamata da metralhadora “Lurdinha” que impedia o avanço de sua companhia. Houve então uma pausa no tiroteio.

Surpresos com a ousadia e loucura do gesto, também o inimigo quedou-se, estupefato, diante do que via. Pedro parecia correr, sem tocar o solo. Ofegante, alcançou a trincheira inimiga, milagrosamente incólume. O terror imposto pela primeira garganta degolada imobilizou os alemães. Com a própria metralhadora inimiga, arrancada com fúria de seu suporte, ele liquidou o grupo que mais tarde a lenda aumentou para dez, mas que em realidade era de quatro soldados inimigos. Dos abrigos ao pé do morro ouviu-se daí um clamor de seus companheiros que, diante da eliminação do forte obstáculo irromperam em arrasador avanço, abrindo preciosa brecha na defesa germânica.

            Naquela tarde nascia o Matadez. Seu feito possibilitara o ganho do terreno no setor onde seu regimento atacava. Nascia o Matadez e com ele o maluco que mais tarde iria divertir os cidadãos da pequena cidade.

            O tempo correu, cuidando sempre de trocar o herói pelo mendigo palhaço. Cuidou com eficácia daquela transformação, incutindo na cabeça dos habitantes a imagem inofensiva do divertido Matadez. Firmou-se, então, na modesta comunidade a popularidade do louco mendigo.

            Foi então que aconteceu a complementação do castigo do destino carrasco para com o herói esquecido. Numa manhã de domingo, enquanto as primeiras beatas se dirigiam para a primeira missa, Rosa, a antiga paixão de Matadez, foi encontrada. Jazia moribunda numa poça de sangue que era o fim de um longo rasto que vinha desde o descampado, detrás do mercado. Na calada da noite fora violentada selvagemente e a vida se lhe acabava naquele momento. O grande alarido das beatas logo fez acorrer a população ao palco da tragédia. E antes que mais testemunhas chegassem, as beatas preconceituosamente guardaram a últimas palavras de Rosa, que em seu estertor, talvez levada pelo remorso, clamava pelo ser amado:

            – Pedro! Pedro Cantídio!

            Começaram então as perguntas sem respostas, com um pré julgamento de Matadez, insuflado pela distorção das beatas que atribuíam à citação do nome uma denúncia de autoria do bárbaro crime. E, depois de tudo, as investigações tomaram lugar, sempre cercadas de mil hipóteses, onde a possibilidade do assassino voltar a agir ganhava corpo nos comentários da população.

            Foi quando, esquadrinhando o sítio do crime, ao redor de onde se iniciava o rasto de sangue de Rosa, um dos investigadores descobriu, enroscado em uma cerca de arame farpado, um pedaço de tecido grosso. Não foi preciso muito exame para identificar a origem do pedaço de pano. Uma excitada comitiva deixou a Delegacia em busca de Matadez. Juntada aos primeiros depoimentos distorcidos das beatas, a prova encontrada enriquecia sobremaneira a culpabilidade do mendigo. Entretanto, a comprovação se fazia necessária, ainda que se levasse em conta o fato de não serem conclusivas as provas existentes.

            O olhar vazio de entendimentos se dirigiu de uma para outra e depois passou por todas as fisionomias do grupo que o cercou no banco da pracinha. Abriu-se num sorriso inofensivo e entregou-se docilmente ao convite do delegado para que o acompanhasse. No momento da prisão não houve violência. O cortejo seguiu apressado para a delegacia enquanto o personagem central nutria sonhos confusos, interpretando tudo como homenagem que lhe prestavam… O sorriso era radiante e ele acenava a cada novo espectador do grande alvoroço. Vivia sensações antigas, como as que experimentara ao voltar da guerra.

            A cidade era um lugar carente de novidades. A calma que ali imperava chegava a angustiar ao menos avisado que por lá se instalasse por uns dias. Naquela semana, porém, o lugarejo se fartou de agitação. O macabro crime era tema permanente nas rodinhas da praça ou nas reuniões nas casas. A imaginação descontrolada de cada qual nutria fantasias que cada vez mais culpavam o mendigo como autor do assassinato. A conclusão de tais reuniões era que já se tratava da segurança dos cidadãos a prisão do insano assassino.

Na delegacia o delegado chegava à beira da exaustão, tentando desvendar o mistério. O pedaço de pano encontrado era de fato parte da capa de Matadez. Mas aquilo estava longe de ser prova conclusiva. E assim crescia a dificuldade para elucidação do crime ocorrido. E o tempo passava e com ele cresciam as apressadas conclusões de alguns, amedrontados com a possibilidade de um novo ataque do louco marginal. O delegado exasperava-se em cada nova sessão de interrogações do mendigo. Por respostas ele só ria, e ria muito, um riso sempre idiota que a quem o assistisse perceberia logo o inteiro alheamento do forte candidato a réu. E como se fosse uma justificativa final, a demora burlou a lei e as mentes mais exaltadas decidiram pela decretação da culpa do mendigo. E, então, o tumulto se instalou. Começou no bar da praça terminando na porta da delegacia com a multidão inflamada, pedindo a cabeça de Matadez. Pelo senso do dever o delegado tentou primeiro a persuasão, sem consegui-la. Depois, diante do perigo de um linchamento, apelou para a força e postou soldados em defesa do preso.

Lá dentro o alarido incomum sacudiu o cérebro doente, fazendo-o ficar alerta. De dentro da cela ele viu quando o primeiro soldado tombou, atingido por uma pedrada na testa. De pronto o revide se fez presente. Em nome da segurança os primeiros tiros para o ar começaram. Dentro de cela Matadez agitava-se freneticamente dançando e gritando. Ria de novo e batia palmas. Mas, aos poucos foi se aquietando e procurando se proteger com a capa, contra um frio que não existia… A visão das armas, o barulho dos tiros e as fardas dos soldados furaram por um momento o bloqueio mental e a lembrança o transportou para a trincheira gelada de Monte Castelo. Pareceu sofrer muito naquela tarde. Das risadas entregou-se a gritos e uivos, agarrado às grades, onde a fisionomia transida denunciava todo pânico que invadia o afetado cérebro.

            No dia seguinte, com reforços chegados e o tumulto dominado, o crime foi esclarecido: o verdadeiro autor, movido por remorsos, se apresentou dando detalhes em seu depoimento que não permitiu que pairassem dúvidas quanto à sua autoria.

            Houve o julgamento na cidade vizinha, sede da Comarca. Mas, retomada a antiga rotina, o lugarejo já não era mais o mesmo. Na praça, ao som do maxixe já não se via mais a dança engraçada do mendigo. Ele partira tão logo se viu libertado. Dentro de toda loucura algo lhe ordenou que saísse dali, pois a segurança não era boa naquele reduto. E ele caminhou e caminhou muito, sempre sem rumo conciso em mente. Incrementara ainda mais a figura do mendigo, agora também andarilho. A barba e o cabelo, que vez por outra um grupo de pessoas caridosas cuidava de tosar, haviam crescido, atingindo o máximo do desleixo. Também a velha capa, sempre mais esfarrapada, ganhara forças em sua sujeira.

            E ele apenas caminhava. A última notícia que tiveram a seu respeito foi de um caminhoneiro local que o reconheceu, caminhando ao longo de uma rodovia, já no sul do estado, próximo à divisa com São Paulo. Depois disso não mais se ouviu falar de Matadez. O tempo correu e sua comunidade o esqueceu. Afinal, já era oito de maio do meio da década de oitenta.  Havia decorrido um ano desde o assassinato de Rosa.

E aquele era um dia festivo na cidade do interior de São Paulo. Como outras tantas cidades, típicas do interior paulista, aquela também estava em festa. Era um dia especial em que se comemorava o quadragésimo aniversário da vitória aliada na Segunda Guerra Mundial. Também, como tantas outras, aquela cidade era sede de uma unidade militar. E assim, tudo era festa. Não haviam sido poupados esforços em divulgar as festividades entre a população que acorreu em massa para assistir as solenidades amplamente anunciadas. No palanque as autoridades militares misturavam-se com as demais da cidade, aguardando início da parada, o ponto alto das comemorações programadas.

            A banda surgiu lá no fim do pátio e veio vindo executando a canção do expedicionário. Atrás dela o corpo da tropa marcava compasso marchando a passo firme sobre o grande pátio interno do quartel. O entusiasmo era grande, imprimindo emoção pela canção executada pelos soldados que desfilavam, enquanto a letra dizia:

            “Você sabe donde eu venho?

            Venho do morro, dos engenhos

            Das terras dos cafezais” …

A multidão irrompeu em aplausos, excitando ainda mais o entusiasmo dos que cantavam: “Não permita Deus que eu morra, sem que volte para lá”…

            Quando a banda que guiava a parada se aproximou, houve uma agitação no cordão de isolamento e um início de tumulto se estabeleceu. Assustando as crianças e causando asco aos adultos, o mendigo rompeu a massa compacta da assistência lançando-se em numa dança exótica bem à frente da tropa que desfilava. Dançava alucinado, de um lado para outro, fazendo balançar a sacola com seus pertences, parcialmente encoberta pela capa imunda.

            Até que dessem conta da inconveniência os homens da segurança permitiram que o desfile atingisse a proximidade do palanque. Indiferente ao constrangimento provocado pelo mendigo, um inflamado locutor anunciava:

            – E aí está, senhoras e senhores, ao som da mesma canção cantada no desembarque no Rio de Janeiro, quando voltou da Itália, aí está o nosso glorioso Regimento de Infantaria! O primeiro Regimento brasileiro a pisar em terras italianas! O primeiro a sentir a crueza dos combates, o mais bravo de todos!

            A multidão aplaudia delirantemente. No entanto, a inesperada intromissão do estranho personagem empanava a euforia dos que assistiam. Um princípio de mal estar se instalou entre os que presenciavam a cena forçando o capitão que coordenava a segurança do evento a tomar uma atitude. Convocou apressado dois soldados que vigiavam o cordão de isolamento mandando-os retirar o mendigo da cena.

            Não houve resistência por parte do pobre diabo. O sorriso festivo continuou ainda por um pouco, enquanto ele buscava entender a atitude dos guardas. Aos poucos se apagou o sorriso e ele protestou, como que inundado por um momento de raciocínio lógico:

            – Soltem-me! As palmas são para mim. Sabem quem eu sou? – Sem se importarem com o protesto, os soldados foram mais rudes ao arrastarem o asqueroso personagem para longe do local, enquanto ele permanecia em suas reclamações:

            – Mas são para mim as palmas! Eu sei cantar, querem ver? “Você sabe donde eu venho”…

            Já a alguma distância do palanque, com um forte safanão os soldados atiraram o mendigo sobre o gramado, atrás de uma cerca viva de plantas. Como última repreensão eles alertaram o andarilho:

            -Não volte lá senão a gente te mete a borracha!

            Aquietou-se a pobre criatura no canto escondido onde fora atirado. O repúdio da humanidade à sua condição já o acostumara à obediência diante dos nãos violentos que recebia. E, de novo a consciência se anuviou e ele dormiu.

Não muito distante dali, atrás do palanque, quedava-se uma imponente estátua de bronze, de um soldado combatente, empunhando seu fuzil em posição de luta. Ao redor, tudo já era silêncio absoluto. A festa acabara com a noite de chuviscos tomando seu lugar. Em seu canto escondido o mendigo continuava entregue ao sono. Escapara às várias rondas de vigilância por toda a noite, permanecendo no sono que o corpo sofrido reclamava. E nem o chuvisco frio o incomodou tanto quanto os sonhos que o assaltaram naquele repouso. Sem interrupção do sono pesado, decretado também pelas inúmeras cachaças da manhã anterior ele sonhou. Viu de repente que a estátua de bronze se mexia. Com extrema lentidão ele viu o estático combatente mover a cabeça para um lado e para o outro, e em seguida, em sua direção, fixando nele o olhar autoritário, enquanto o interpelava:

– Mendigo! Levanta-te e toma compostura diante de teu herói! Não viste por acaso a festa que hoje me fizeram? Vamos, homem, apruma-te e presta-me tua continência!

Ainda em sonhos ele se pós em pé, amedrontado, chegando a ensaiar uma tímida continência. Assentiu temeroso com a cabeça enquanto procurava se afastar. Mas então ele notou que a estátua tirara de cima dele o olhar, e se voltava à sua posição de imobilidade total. Então, aos poucos, dentro do sonho que chegava a ser mais lúcido que os pensamentos do cérebro que o guiava ele deu sua interpretação aos fatos. Acordou de todo, com um sobressalto. Olhou ao redor e viu que estava só. Deixou-se levar bruscamente, demonstrando grande raiva. Forte sentimento de revolta instalou-se em sua mente, que mesmo doente definia as injustiças contra si, sendo a maior delas o repúdio à sua condição de herói da Pátria. Mas, naquele momento, ele pareceu estar cansado de tudo…

Caminhou resoluto em direção a estátua e, ao se acercar, sem desviar o olhar desafiador, abriu a sacola de seus pertences…

E o dia já apresentava as nuances da manhã que chegava. Ainda furtivo, tendo concluído seu intento, o mendigo se afastou da estátua, e como um fantasma, ganhou a rua, passando pela sentinela que cochilava. Andou a esmo pelas ruas da cidade até que, por puro acaso desembocou na movimentada rodovia que cortava a região. Aí ele buscou célere a direção que o afastava da cidade que lhe permitira – num raro rasgo de consciência – seu desabafo contra a injustiça do destino.  

No horário de seu turno, um sargento passou diante da estátua do expedicionário. Parou por um momento retido por alguma coisa que lhe despertou a curiosidade. Em seguida houve por bem comunicar sua descoberta ao oficial de dia. Não tardou para que o outro militar chegasse apressado aos pés do monumento. Da mesma forma ficou intrigado com o que viu. Com bastante cautela retirou do pescoço da estátua uma condecoração militar, presa a uma fita verde e amarela, onde pela imundície mal deixava distinguir as cores. Retirou também um papel, amarelado e roto que estava espetado na baioneta do fuzil da estátua. E o oficial se apressou em ler o conteúdo do igualmente imundo documento: “Diploma de Cruz de Combate. – Ao soldado Pedro Cantídio confiro a Cruz de Combate de Primeira Classe por denodo e bravura demonstrados em campanha na região de Monte Castelo, Itália, quando sozinho aniquilou um ninho de metralhadora, possibilitando a abertura de preciosa brecha na defesa inimiga, o que redundou com a tomada da mencionada cidadela.” Abaixo, muito surpreso, o oficial leu um nome sob a assinatura que identificava o autor da comenda como Ministro da Guerra.

O oficial concluiu a leitura do documento e em posse também da condecoração recolheu-se ao seu gabinete. Aguardava o romper do dia quando, no início do expediente da unidade militar, daria prosseguimento ao decifrar do estranho episódio estabelecido com o encontro dos objetos dependurados na estátua.

No entanto, distante alguns quilômetros dali, no bar de um posto de gasolina, às margens da movimentada rodovia, Matadez já convencia um caminhoneiro a lhe pagar a primeira cachaça da manhã…

 

Odracir Sopmac, é o pseudônimo de nosso amigo e conterrâneo Ricardo de Campos Ferraz, membro da Academia Caçapavense de Letras