GERAL

Cessna 172: quanto tempo de voo sem pousar ???

Ah aviação, sempre surpreendendo. Claro que quando se fala em tempo de voo sem parar, nos vem a mente o extraordinário feito de Dick Rutan e Jeana Yeager, que circunavegaram o Globo em 1986 sem paradas no,

Rutan Voyager.

Imagem de Amostra do You Tube

A façanha durou 9 dias, 3 horas e 44 minutos, sem reabastecer. Quem já teve a chance de visitar o Smithsonian National Air and Space Museum, em Washington, ao lado do aeroporto internacional (tem até ônibus grátis saindo do terminal) pode ver de perto o Voyager (em corte) e imaginar como duas pessoas sobreviveram ali por 9 dias. Eu mesmo cocei a cabeça. A propósito – a Jeana Yeager da Voyager não tem nenhum parentesco com Chuck Yeager. Se não sabe quem é Chuck e gosta de aviação, vá ler um pouco sobre ele, ou pelo menos assista o filme “Os Eleitos“.

Imagem de Amostra do You Tube

Dia desses me deparei com um outro recorde de tempo em voo, só que desta vez com re-abastecimento, em 1958.
Pensei: Hum, esta geração americana que viveu entre 50 e 60 possuía parafusos soltos na cachola, tanto é que conseguiram chegar à lua. Porque para ir até a lua, com aquela tecnologia, não era coisa de gente normal.

Enfim, quando comecei a ler sobre o recorde de voo sem pousar em um Cessna 172, imaginei que uns 13 dias já estava de bom tamanho. Afinal você precisaria trocar o óleo do motor e filtros com cerca de 150 horas de voo (6,25 dias) não é mesmo? Bem, não necessariamente se você estivesse vivendo em 1958!

Durante o mês de Dezembro daquele ano, dois jovens modificaram um Cessninha para voarem em círculos sobre o deserto do sudeste dos Estados Unidos e bater o recorde de tempo sem pousar. Quarenta anos antes, os recordes eram quebrados em horas de voo. O primeiro recorde foi marcado por John Macready e Oakley Kelly em 5 de Outubro de 1922, em um Fokker T2 – 35 horas e 18 minutos de voo. Treze anos mais tarde, o reabastecimento em voo permitiu que Fred e Al Key ficassem voando sobre o Mississippi por 653 horas e 34 minutos (mais de 27 dias) com um Curtiss J–1 Robin. Tanto o Fokker T–2 quanto o Curtiss J–1 eram aviões com fuselagem bem mais larga que o Cessna 172. Em 1949 o recorde de voo subiu para 1.124 horas, onde permaneceu por nove anos até que Jim Heth e Bill Burkhart decolaram com seu Cessna 172, batizado como “The Old Scotchman”, e voaram por 1.200 horas e 16 minutos sobre Dallas, no Texas, durante Agosto e Setembro de 1958.

Espere aí! Leram certo? 1200 horas são 50 dias voando! Como pode um Cessna 172 voar por 50 dias sem pousar? Pior que este recorde de 50 dias voando durou apenas 123 dias, quando Bob Timm e John Cook estabeleceram o novo recorde, que permanece até hoje e jamais será quebrado (pelo menos oficialmente).

O projeto: Modificar o Cessna

Kuenzi era um mecânico que trabalhava na Alamo Aviation e já havia trabalhado no N9217B, o Cessninha que Bob Timm havia comprado. Um dia Bob entrou em contato e falou sobre um projeto em que estava envolvido e perguntou a Kuenzi se ele estaria interessado em ajudar, e a resposta foi: Claro!

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As modificações na aeronave levaram quase um ano, e incluíram novos aviônicos, como o Narco Omnigator Mk II e um piloto automático Mitchell. É importante falar que um piloto automático desta época era na verdade apenas um “wing leveler”, ou seja, apenas um eixo de comando para manter as asas niveladas – não tinha heading, nem altitude hold, nem nada. Além dos aviônicos, um tanque de 95 galões foi instalado na barriga com uma bomba elétrica que transferia o combustível para as asas. Tubulações extras de óleo foram instaladas através da “parede de fogo”, que permitia que fosse possível trocar o óleo e o filtro com o motor funcionando! A porta direita e a parte interna (assentos traseiros) foram removidos. No lugar da porta rígida de metal do lado do co-piloto, uma porta sanfonada foi instalada.

Uma plataforma pequena podia ser abaixada do lado direito e possibilitava que um dos dois pilotos pudesse ficar em pé fora do avião para executar o re-abastecimento e a “manutenção” no motor. Um pequeno colchonete com 10cm de espuma e 1,20 x 1,20m foi colocado no lugar do assento direito removido. Até uma pequena pia de aço inoxidável foi colocada, para que a tripulação de dois pudesse “se lavar” e fazer a barba.

Timm também era mecânico e instruiu Kuenzi a instalar uma linha de injeção direta de Etanol, para que uma pequena quantidade pudesse ser injetada na câmara de combustão para prevenir o acúmulo de carbono nas paredes e na cabeça do pistão. Kuenzi não concordou com o projeto, mas foi obrigado a fazer o que Timm pediu e criou o sistema de injeção de alcool.

Em sua busca para quebrar o recorde, Timm contactou a Continental Motors Corp. (CMC) de Muskegon, Michigan, o fabricante do motor de seis cilindros e 145 HP do Cessninha. Explicou o que pretendia fazer e conseguiu com que o gerente de vendas concordasse em fornecer um motor “zero” para a tentativa de quebra de recorde. Timm solicitou um motor “especial”, mas o gerente percebeu que a publicidade gerada para a Continental poderia sair pela culatra se um motor especial fosse utilizado, pois logo todo mundo estaria pedindo à fabrica motores “especiais” para seus aviões.

Kuenzi descobriu depois que o Gerente havia pedido para que uma de suas empregadas do sexo feminino fosse até a linha de produção e escolhesse um motor que ela mais gostasse. Desta maneira, o motor seria “especial” aos olhos da Continental…rs.

O mecânico então removeu o motor original com 450 horas de voo e instalou o motor “especial” zero KM, junto com a linha de injeção de alcool. Timm e seu primeiro co-piloto decolaram para a longa jornada, mas problemas interromperam as duas primeiras tentativas após alguns dias de voo.  Uma nota no diário de Timm ilustrou a inocência dos anos 50 quando escreveu que “o céu iluminou de manhã, as 4 horas da madrugada”. Descobriu depois que havia testemunhado um dos 57 testes atômicos programados para aquele ano, em uma área 12o km a nordeste de Las vegas.  A explosão ocorreu durante a terceira tentativa, que também foi interrompida por causa das válvulas de escape queimadas no motor “especial”.

Nenhuma das três primeiras tentativas durou mais que 17 dias de voo, e Timm sabia que não estava se dando bem com o co-piloto, então o demitiu. Havia uma crescente frustração no projeto por causa dos atrasos e uma série de problemas mecânicos e para piorar, Heth e Burk-hart haviam recém completado seu voo de 1200 horas (mais de 50 dias). Kuenzi então decidiu remover o motor “especial” e re-instalar o antigo e em segredo desconectou a linha que injetava alcool nos cilindros e a direcionou para jogar o alcool para fora da capota, na parte de baixo onde Timm não pudesse perceber. E funcionou! O motor antigo começou a funcionar mais “redondo” que o “especial”.

O novo co-piloto

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John Wayne Cook, um solteiro de 33 anos também era mecânico e piloto na Alamo Aviation, a mesma empresa que Kuenzi trabalhava. Quando Timm perguntou a Cook se ele estava afim de ser seu co-piloto na façanha, a resposta foi: “Claro, eu tentarei“! A foto acima mostra Cook ao final do voo vencedor (à esquerda, de bigode).

Cook frequentemente saía do Cessna em voo, pisando na plataforma adaptada, para limpar o parabrisas do avião, e gostava de fazer isso quando havia uma maré de fotógrafos registrando a cena. Curiosamente, quando eu procurava fotos de John Cook limpando parabrisas, encontrei uma empresa com nome de John Cook Windshield repairs e outra de limpeza de janelas.

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Finalmente, em 4 de Dezembro de 1958, os dois mecânicos-pilotos decolaram o pequeno C172 do aeroporto McCarran em Las Vegas. O FAA havia autorizado o avião a ser operado com peso superior ao Peso Máximo de Decolagem por até 180 kg. Após a decolagem, quem se arrisca neste momento a dizer quantos dias eles ficariam voando? E como? Já já vão ficar sabendo.

Para evitar que houvesse fraude, com por exemplo um pouso clandestino durante a noite, oficiais correram na pista do aeroporto logo após a decolagem em um Ford Thunderbird  conversível e pintaram marcas brancas nos pneus, que seriam inspecionados novamente antes do pouso, para se assegurar que não haviam tocado no chão.

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Reabastecimento

Um caminhão Ford foi também modificado e recebeu um  tanque de combustível na carroceria e uma bomba de posto de gasolina, além de outras parafernálias para suportar a longa jornada do C-172. Quando fosse necessário abastecer o avião, era marcado um encontro em uma longa estrada no deserto próximo a Blythe, California. Um cabo elétrico descia um gancho em que a bomba era presa e Timm ou Cook usavam a válvula para abastecer o tanque da barriga. A operação toda demorava 3 minutos. Olha a loucura:

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Esse ritual era feito duas vezes por dia, e quando havia problemas meteorológicos, um novo encontro era agendado por rádio em outros horários. Foram 128 reabastecimentos no total.

Os primeiros dias foram voados nas proximidades de Las vegas, para ter certeza que os problemas mecânicos haviam sido resolvidos antes de voar para Blythe, onde o terreno era menos montanhoso e mais baixo. As primeiras semanas se passaram sem incidentes e logo chegou o Natal.

Como o voo estava sendo patrocinado pelo Hacienda Hotel e cassino, os chefs preparavam refeições saudáveis e com ingredientes sempre frescos, que eram entregues também pelo caminhão de abastecimento, através do mesmo gancho que pegava a mangueira de combustível. Para passar o tempo, a dupla lia gibis, fazia exercícios ou simplesmente criavam jogos do tipo “adivinha quantos carros vamos ultrapassar na próxima hora”.

Os perigos do voo

Em seu diário, John Cook escreveu: “A gente tinha direito a um litro de água para tomar banho, uma toalha larga e sabonete dia sim, dia não.”  Tenho certeza que estão imaginando como eles faziam outras necessidades…

Eles voaram a maior parte do tempo sobre os desertos de Blythe, California, e Yuma, Arizona, mas de vez em quando iam para Oeste até Van Nuys e Los Angeles para chamar atenção de rádios e TVs. Os diários de  Cook começam a refletir os efeitos de noites mal dormidas, falta de atividade física, barulho constante do motor e a rotina diária sobre os dois homens.

“Entrei em estol, sobrecarregado, ao lado de uma montanha tentando fazer uma curva com o tanque de barriga cheio e isso me fez perceber que não teríamos qualquer chance se tivesse ocorrido no escuro, então preferimos ficar voando a noite próximo aos aeroportos para o caso de um pouso de emergência.”

Os dois alternavam o tempo pilotando a cada 4 horas, mas era bem difícil conseguir dormir ou descansar durante o dia. No trigésimo sexto dia, o avião voou sozinho por mais de uma hora. Timm havia dormido perto do aeroporto de Blythe as 2:55 da manhã, minutos depois de assumir o posto, e acordou as 4 da manhã na metade do caminho para Yuma. Felizmente o piloto automático Mitchell ainda estava funcionando aquele dia e salvou a vida deles.

As falhas mecânicas começam a aparecer

No dia 39, o gerador elétrico falhou. Daquele dia em diante, todo o combustível tinha que ser transferido para os tanques de asa usando uma bomba manual. Um geradorzinho eólico (tipo RAT) havia sido instalado no montante da asa, mas sua potência era muito pequena.

No dia 23 de Janeiro eles quebraram o recorde de 50 dias e tomaram a decisão de continuar voando enquanto aguentassem, assim protegeriam seu recorde, que haviam trabalhado tanto para conseguir. No dia 50 já haviam perdido também o Tacômetro (indicador de RPM do motor), o piloto automático, o aquecedor da cabine, as luzes de pouso e de taxi, o indicador do tanque da barriga, a bomba elétrica de combustível e o gancho.

As velas de ignição e as câmaras de combustão estavam tão carbonizadas que no início de Fevereiro a potência do motor mal dava para fazer o avião subir após os abastecimentos.

Finalmente, pousaram

No dia 7 de Fevereiro de 1959, o N9217B finalmente pousou no aeroporto McCarran, após os inspetores conferirem as listras brancas nos pneus. Os dois precisaram de ajuda para sair do pequeno avião coberto de manchas de vazamento de óleo.

A meta de Timm era provar que o pequeno avião era seguro para voar. Foram 64 dias, 22 horas, 19 minutos e 05 segundos de voo contínuo. Impressionante. Ele conseguiu provar ou não?

O lendário Cessna 172 N9217B está hoje em exposição no saguão do aeroporto de McCarran de Las Vegas (e eu estive lá e não conhecia essa história).

64 dias voando. Fucking Unbelievable.

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