Planejar, planejar e planejar !!!
Um voo seguro, uma boa aproximação e um pouso preciso são consequências de um bom planejamento. Planejar é fundamental, mas como tudo na vida, há que se acertar na medida, pois tudo que acontece em excesso pode ser ruim.
Certa vez, voando o MD-11, fiz um voo para Europa onde a obsessão do comandante pelo planejamento tornou a rotina de trabalho desnecessariamente cansativa. Naquela noite a tripulação na cabine de comando era de 3 comandantes e um copiloto de forma que durante o longo voo de cruzeiro, enquanto uma dupla trabalhava a outra descansava. O meu turno de trabalho foi na segunda metade da viagem, a partir do sobrevoo da região da Ilha do Sal (Cabo Verde) até o pouso em Londres, quando ao meu lado ficou o Comandante do voo dividindo as tarefas na cabine. Quando há mais de um comandante na tripulação, geralmente o mais “antigo” na empresa exerce a responsabilidade pelo voo.
Nestas últimas cinco horas e meia de voo é feito o planejamento para a chegada; verificação periódica dos boletins meteorológicos do destino e alternativas, análise dos possíveis procedimentos de descida e pouso, monitoramento do consumo de combustível, rotas de taxi após o pouso e etc. Como o voo é longo, além de planejar dá para fazer muitas outras coisas: bater papo, comer, ler revistas e jornais, descansar, esticar as pernas, estudar e olhar a paisagem.
Mas a preocupação daquele comandante quanto ao planejamento era maior que tudo e por respeito ao colega, tive que acompanhá-lo. Mesmo com tempo bom em Londres, a cada meia hora ele queria uma atualização das condições meteorológicas. Mesmo com o avião consumindo menos que o previsto ele queria um cálculo para uma segunda rota alternada. Ele não parava de planejar e se prevenir de todas as maneiras. Consultava todos os manuais que traziam as particularidade das rotas a serem voadas, dos (im)prováveis aeroportos de alternativas e em seguida voltava para a atualização meteorológica. Nem parecia que ele já havia feito aquele voo algumas vezes. Pela primeira vez em um voo para a Europa eu passei 100% do tempo planejando e “brifando” a chegada sem dar tempo para qualquer outra coisa. Pois não é que a única coisa que ele não previu aconteceu?
Próximos a Paris, o comissário chefe de equipe nos informou que havia um passageiro passando mal. Um médico foi solicitado a prestar ajuda e após uma análise veio a séria recomendação para que um atendimento adequado fosse realizado o quanto antes, pois o passageiro em questão era um senhor que apresentava um quadro de AVC. Todo o planejamento para a chegada em Londres foi momentaneamente para a “cucuia” e numa descida às pressas, pousamos em Paris onde o passageiro, acompanhado de seu filho desembarcou em uma ambulância.
Para concluir o voo na etapa Paris/Londres, o comandante perguntou quem gostaria de “fazer a etapa”, ou seja, ocupara os assentos de decolagem e pouso. Apressei-me em dizer que o ideal era que ele e eu continuássemos na pilotagem, afinal de contas, estávamos planejando aquela chegada em Londres havia horas. Que voo cansativo!
Após dois dias em Londres assumimos o voo de volta. Fiz questão de optar por trabalhar junto com o copiloto e assumimos a primeira metade do voo, da decolagem até o sobrevoo da Ilha do Sal. Foi ótimo. Trabalhei, comi bem, li os jornais e revistas e descansei um pouco. Na passagem de turno dei uma piscadela para o outro comandante, que por ser mais “jovem” na empresa, assumiria o papel de copiloto para o Comandante Planejador. A piscadela queria dizer: – Será que pelo menos na volta ao Brasil a carga de trabalho vai ser menor e você vai conseguir ler o jornal?
Depois do pouso em Guarulhos ele me contou que mesmo estando acostumados à chegada, mesmo estando o tempo bom, sem qualquer indício de nevoeiro, ele também não conseguiu relaxar em função de um constante planejamento.
Vai voar, trabalhar ou viajar? Planeje sim, mas acerte na medida ok?
Comandante Beto Carvalho é aviador, e piloto dos grandes jatos