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“Empurra”: o voo mais cansativo da aviação comercial brasileira !!!

Embora a programação do voo do “empurra” para o Japão fosse bastante cansativa, havia a turma que gostava tanto que até pedia para ser escalada para esta programação. Para contar como era a rotina do voo, vamos supor que ele esteja começando no dia primeiro de determinado mês, em uma segunda feira.
No primeiro dia a decolagem do Rio de Janeiro para Guarulhos era por volta de dez horas da noite. Para os tripulantes base São Paulo, a programação já começava pela manhã quando havia o deslocamento para o Rio de Janeiro para que houvesse o descanso de pelo menos doze horas antes de começar o voo para o Japão. Após pousar em São Paulo, a decolagem era prevista para a meia noite de segunda para terça feira. Era um voo longo até Los Angeles e os tripulantes que trabalhavam na primeira metade da etapa, varavam a madrugada aguardando o período de descanso.

No dia seguinte, quarta feira e terceiro dia da programação, metade da tripulação seguia para o Japão com decolagem por volta de 13hs e chegada no final da tarde do dia seguinte. O voo era de doze horas, mas avançava-se no tempo 30 horas! Quinta feira no Japão, quarta feira no Brasil! A ida até o Japão era menos sacrificante, o corpo ainda não “protestava”. Na volta é que a situação realmente se complicava.

Havia várias correntes de pensamento em relação à melhor técnica para enfrentar a mudança de fusos. Tinha os tripulantes que tentavam se manter no fuso horário de origem (Brasil ou Los Angeles?), muitos até levavam fitas adesivas na mala para melhorar a vedação da cortina do quarto do hotel. Outros achavam que o melhor era se esforçar para entrar logo no fuso da região, e embora estivessem super cansados, se mantinham acordados para só ir para a cama no horário da noite local. E por fim havia a os que diziam para simplesmente obedecer ao corpo: Se está com sono, durma, se não, fique acordado, se está com fome, coma e assim por diante. Qualquer que fosse o sistema adotado, o corpo e a cabeça sentiam os efeitos do “jet-lag” e era inevitável acordar na madrugada no Japão sem ter o que fazer ou aonde ir. Alguns iam para o bar do hotel, outros se reuniam para ficar conversando ou tentavam assistir TV, mas a única opção viável era a CNN, pois os demais canais eram em japonês.

Na sexta era o regresso a Los Angeles com saída por volta de sete da noite e chegada a uma da tarde do mesmo dia! Nesta volta, o estômago está confuso, até porque vivía-se 36 horas em apenas 12, então tomava-se café da manhã duas vezes, almoçava-se também duas vezes e jantar também duas vezes! O intestino também sofria com esta viagem pelos fusos horários. Aqueles que tinham que tomar remédio com horário certo, em algum momento ficavam inseguros e não sabiam se tinham tomado a mais ou a menos. Por falar em remédio, era notório que neste voo do empurra, muitos tripulantes, principalmente entre os comissários, tomavam medicações para dormir, para não dormir e até antidepressivos. Florais, homeopatia, “reiki” e outras técnicas de relaxamento e realinhamento corporal também eram usadas pelos tripulantes. Para as mulheres, até o ciclo menstrual ficava desregulado. Uma colega contou um caso de uma passageira que saindo do Japão para LAX, pediu a uma amiga para ir buscá-la no aeroporto. Quando chegou lá, a amiga não estava. Ela resolveu ligar depois de esperar uma hora e ouviu da amiga que ela a esperava no dia seguinte… Quando você cruza de volta a linha do dia, você anda pra trás no tempo, ou seja, ela estava adiantada 24h!!! Imagine isso. Você está acostumado a sair num dia e chegar no dia seguinte, certo? Nesse voo você sai às 19h e chega às 14h do mesmo dia! Você chega antes de ter saído!!! Loucura!!!!

Finalmente no dia seguinte, (sábado em Los Angeles, sexto dia da semana, porém o sétimo dia vivido pelo organismo do tripulante) era a decolagem de volta ao Brasil. Neste voo, alguns já tinham esquecido o próprio nome! Em mais uma etapa longa, após pousar em São Paulo ainda havia o trecho final para o Rio de Janeiro. Os tripulantes chegavam “mortos”, ao final do voo muitos ligavam para a chefia pedindo pelo amor de Deus para não fazer mais esta programação. Uma colega contou que na primeira vez que fez o empurra chegou acabada, levando dias para se recuperar. Na segunda ela chegou enfurecida, querendo dar na cara de todo mundo. Já na terceira, ela conta que chegou em casa profundamente apática e infeliz, que desta vez podiam dar na cara dela que ela não esboçaria reação. Não era fácil, oito dias na vida do cidadão, enquanto no calendário apenas sete se passavam.

Com tudo isso, em especial para os comissários, cujo descanso a bordo era em assentos da classe econômica, e também devido à natureza do trabalho, o voo era dificílimo. Como apresentar ao passageiro o “padrão Varig”? Muitos comissários entraram de licença médica na época do empurra. O serviço médico da empresa reconhecia que era uma programação pesada, que não deveria existir, mas nem os médicos e nem o sindicato conseguiram acabar com ela.

Mas se o empurra era um voo tão desgastante, por que a Varig manteve esta programação por alguns anos, e por que alguns tripulantes gostavam?

Para a companhia era uma simples questão de custos, o bem estar dos funcionários já não era uma prioridade. Com o empurra o número de tripulantes baseados em Los Angeles foi reduzido à metade, gerando uma economia significativa. Para os que gostavam, um dos motivos era o valor das diárias de alimentação, que nesta programação chegava a U$ 500,00 numa época em que a cotação chegou a 3,80 reais por dólar. Difícil era não gastar boa parte deste dinheiro, pois EUA e Japão são o “paraíso” dos eletrônicos. Outro motivo que fazia com que alguns até pedissem para fazer o empurra era que esta programação dava um total de 49 horas de voo, quando o limite mensal é de 85 horas. Com isso, após o período de folga, só era possível voar mais 36 horas naquele mês. Estas horas de voos podiam ser feitas em um voo de quatro ou cinco dias para Europa e, no máximo, mais uma programação de voo bate-volta. Assim, trabalhava-se doze ou treze dias no mês e folgava-se os demais. Fazer o empurra também era a maneira de voar para o Japão sem ter que ficar no baseamento em Los Angeles.

Quando o voo para o Japão deixou de ser diário, a programação do empurra teve que ser encerrada, pois desta maneira o tripulante levaria mais de sete dias para sair e voltar para o Brasil, contrariando as leis trabalhistas dos aeronautas. A maioria celebrou, e uns poucos lamentaram.
Comandante Beto Carvalho é aviador e piloto dos grandes jatos