Aviação comercial ou humanitária???
A programação era de quatro etapas, saindo de Manaus para Tabatinga e fazendo escala em Tefé, tanto na ida quanto na volta. Em Tabatinga havia um passageiro enfermo que deveria embarcar com destino a Manaus, na hora me lembrei do episódio anterior, portanto procurei saber se havia um atestado médico e qual era a real condição do passageiro. Apresentado o atestado e estando ele acompanhado de parentes, liberei o embarque.
Acontece que o passageiro em questão era um cara grande, com aproximadamente 1,85m e seguramente mais de 100 quilos. Ele tinha que ser embarcado em uma maca pois não tinha condições de ficar em pé, e também tinha soro sendo ministrado. Com muito esforço o pessoal em Tabatinga conseguiu subir a maca para dentro do avião pela porta traseira e uma nova dificuldade surgiu: A maca não conseguia fazer a curva para que ele se acomodasse na cabine de passageiros! A Varig sempre disponibilizou um serviço de transporte de passageiros em macas; quando por ocasião da reserva da passagem, o passageiro informava a necessidade, pagava as taxas extras e equipe da manutenção montava uma maca nas últimas fileiras do avião. Para isso, a antepara que divide a cabine de passageiros da parte traseira do avião era desmontada, justamente para que a maca fizesse a curva, e utilizando as duas últimas fileiras de poltronas (seis poltronas no total), a maca era devidamente fixada, podendo o acompanhante se sentar ao lado do “paciente”, tendo um local adequado para fixar o recipiente com o soro e de forma que as máscaras de oxigênio pudessem ser usadas em caso de necessidade.
Porém, neste caso específico, este agendamento prévio não havia sido feito. A maca “aeronáutica” não estava lá, e mesmo que a antepara fosse desmontada, não havia como o passageiro ficar seguro. Ao indagar se ele não poderia viajar acomodado em três poltronas, me foi dito que não, que ele não podia se levantar e nem mesmo carregarem ele pois ele estava muito mal. A solução seria ele simplesmente viajar deitado na maca em que estava,”acomodado” no piso da “galley” traseira da aeronave. Eu teria que avaliar os riscos que isso poderia trazer ao voo, ao próprio passageiro e aos demais ocupantes do avião.
Embora muito improvável, há sempre a possibilidade de uma interrupção de decolagem, e neste caso, com o passageiro “solto” no chão da galley, não seria nada bom para ele. Da mesma maneira, em caso de turbulência, ele poderia ter seu estado de saúde ainda mais agravado. Outra possibilidade, ainda que remota, era ocorrer uma situação de despressurização em que as máscaras de oxigênio não alcançariam uma pessoa deitada no chão. Finalmente, nas operações de pouso há sempre um risco de freada brusca ou algo além que possa resultar numa evacuação de emergência, onde as rotas de fuga devem estar livres e desobstruidas. Para complicar um pouco, o voo até Manaus não era direto, pois ainda teria uma escala em Tefé. Não seria justo dar às comissárias que viajavam na traseira do avião a responsabilidade de cuidar daquele passageiro, que viajando alí, não só atrapalharia o serviço delas mas também poderia colocá-las em situação de risco.
Com todos os demais passageiros embarcados, já com alguns minutos atrasados e diante da impossibilidade de acomodar o passageiro com um mínimo de segurança, eu disse que não seria possível levá-lo. Com mais uma dose de esforço o pessoal desceu ele pela escada traseira e seguimos viagem. Não houve problemas na decolagem, nem turbulência, nem despressurização e os pousos foram macios.
Em Manaus eu conversei com o pessoal da empresa, explicando a situação e consultando a possibilidade de adaptar a maca no próximo voo para Tabatinga (o voo era em dias alternados). No hotel, conversei com a minha mulher pelo telefone, fui contando o caso, até que ela me perguntou: – Você levou, não levou? Eu não levei, e naquela noite eu não dormi direito, preocupado com a situação daquele homem.
Na manhã seguinte voei para Belém, e dois dias depois estava de volta à Manaus. Para o meu alívio, fui informado que um dia depois de eu ter recusado o passageiro, um avião da FAB, devidamente equipado para o transporte de passageiros enfermos e acidentados, foi deslocado para Tabatinga para levar aquele passageiro para Manaus. Chegando em casa, depois de ouvir toda a estória, minha mulher compreendeu a situação, concordando com a minha decisão.
Até hoje eu às vezes me pego lembrando daquele voo. Embora a Varig em sua história já tenha se desviado várias vezes de seu fim comercial, prestando ajuda a milhares de brasileiros no Brasil e no exterior, não cabia a ela (ou as demais empresas aéreas), o serviço humanitário.
Me pergunto até que ponto nós podemos ou devemos nos desviar de regras e protocolos, atrasar nossas viagens e compromissos e assumir responsabilidades em função de uma vida?