Máfia do Ferro velho: carro com perda total vira carro novo!!!
Por volta das 10 horas da última quarta, 27, 135 homens do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), da Polícia Civil, e cinco promotores estaduais cumpriram nove mandados de busca e apreensão em uma operação batizada de Lavoisier, em referência ao químico francês que é autor da máxima “Na natureza, nada se cria, tudo se transforma”. O alvo eram galpões em São Paulo ou em cidades próximas.
Nesses espaços, grandes seguradoras realizam leilão de carros de clientes indenizados por perda total. Como o próprio termo evidencia, tais automóveis não têm mais condições de circular ou seu conserto não vale a pena, por custar quase o valor de um veículo novo. De acordo com os investigadores que trabalham no caso desde janeiro, quadrilhas especializadas atuam nesses locais para alimentar o mercado paralelo de automóveis.
Segundo essa suspeita, o que deveria ser vendido ali como ferro-velho acaba voltando à circulação. Em metade das vezes, o chassi e o documento servem para “esquentar” modelos surrupiados das ruas. Nas demais situações, o carro arruinado, depois de receber funilaria e pintura, é passado para a frente, sem registro algum de seu passado. O negócio é bem vantajoso para os espertalhões. “Quando vendidos como sucata, os automóveis só alcançam entre 5% e 10% de seu valor de mercado”, explica Jair Barbosa Ortiz, titular da 3ª Delegacia de Investigações sobre Desmanches Delituosos.
De acordo com cálculos do delegado, a gangue realiza essa operação ilegal em cerca de 90 000 veículos por ano no Estado de São Paulo, incluindo-se aí motos e caminhões. “Estamos diante de um grande esquema que fomenta o roubo e o furto”, completa a promotora Paula Augusta Marques. As investigações começaram depois de uma denúncia do sindicato estadual da indústria de funilaria e pintura (Sindifupi).
O primeiro passo da maracutaia acontece na própria seguradora, quando o laudo pericial é fraudado. A ação correta seria detalhar a avaria e, em caso de dano de grande proporção, procurar o Departamento Estadual de Trânsito (Detran) para dar baixa definitiva no certificado de registro e licenciamento (o papel verde que o motorista carrega no bolso). Assim, o veículo sai de circulação e deve ser levado para o ferro-velho. A artimanha dos bandidos é nunca fazer essa notificação, o que permite que o documento original seja usado em um dublê ou em um carro “reciclado”. Um dos automóveis com fraude constatada é um Hyundai HB20 prata, ano 2013. Ele pertencia à advogada Karine Sarmento, e chocou-se contra uma carreta na Bahia, há três anos. Ela não se feriu gravemente no acidente e foi indenizada por perda total em 36 900 reais pela seguradora.
Depois, a sucata foi vendida em um leilão por 10 500 reais, sem constar na papelada o histórico de acidente. Os criminosos que compraram o veículo o consertaram com peças roubadas e ofereceram o produto no site Mercado Livre. Em 2014, o músico Leonardo Guimarães pagou 27 000 reais por ele. Ouviu do casal de vendedores que o automóvel pertencia a um sobrinho que estava se mudando para o exterior.
Com poucos meses de uso, o HB20 travou em uma avenida da Zona Norte devido a um defeito no câmbio cujo conserto custou 4 000 reais. Há dois meses, Guimarães recebeu uma intimação para comparecer à sede do Deic. Ali, o veículo foi apreendido. O músico terá agora de entrar na Justiça para tentar reavê-lo. “Fiz o dever de casa. Consultei o documento e não havia nenhum sinistro”, conta ele. “Agora me sinto um bobo.” O casal está sendo investigado e pode ser indiciado por falsidade documental, receptação e estelionato (de dois a oito anos de reclusão).
Na operação realizada na semana passada, caminhões cegonha levaram cinquenta carros arrematados ou prestes a ir a leilão. São itens sob suspeita, em geral em razão da discrepância entre seu estado deplorável e sua documentação sem restrições. O pátio da Mapfre, em Caçapava, a 112 quilômetros da capital paulista, foi fechado temporariamente para a averiguação da frota de 7 000 unidades. Só ali, cinquenta compradores foram abordados (boa parte deles com passagem por receptação ou estelionato), além de funcionários das seguradoras. Suspeita-se que alguns deles possam fazer parte do esquema.
Nas próximas semanas, serão convocados gerentes, diretores e outros executivos de oito grandes empresas da área: Mapfre, Marítima, Allianz, Liberty, Porto Seguro, Bradesco, Itaú e Azul. Procuradas por VEJA SÃO PAULO, as companhias, por meio de nota individual ou via declaração da Federação Nacional de Seguros Gerais (FenSeg), afirmaram que trabalham dentro da lei e vão colaborar com as investigações.
Responsável por fiscalizar o setor e coibir fraudes, o Detran promete implementar até o fim do ano um sistema eletrônico para aumentar a eficácia e o rigor de seu trabalho. Dessa forma, as autoridades do órgão dizem que será possível cruzar imagens e informações do sinistro. O controle atual é feito manualmente. “Não adianta só combater o ladrão de rua. É preciso acabar com essa máfia que atua de forma organizada”, afirma o delegado Ortiz.
O passo a passo das fraudes
› Depois que um veículo se envolve um um acidente e a seguradora constata perda total, o dono é indenizado
› Peritos que trabalham nas seguradoras ou a serviço delas omitem os danos do acidente no laudo de avarias. Isso é feito para que o carro seja vendido sem nenhum registro de sinistro em seus papéis
› Criminosos arrematam o bem em leilões para produzir “dublês” como documento
› Outra possibilidade é revender o automóvel depois de reformá-lo com peças furtadas
Veja o vídeo: